Há expressões que se tornam lemas e, de tão
repetidas, acabam perdendo o sentido. Atualmente, “reforma
universitária” é uma delas: todo mundo
fala disso, mas pouca gente (ou ninguém) sabe bem o
que é (ou será). Pelo menos, há consenso
em que alguma mudança deve acontecer, para que a universidade
brasileira possa celebrar um reencontro com o Brasil. Há
vários aspectos – e muitos desejos.
De um lado, o mais importante é a pressão social,
desde que classes que tradicionalmente não postulavam
isso começaram a aspirar o acesso à universidade.
Digo que esse aspecto é o mais importante, porque,
naturalmente, a universidade não só deve, mas
tem de responder aos anseios e desafios do país. Aliás,
esse é o único dos aspectos que começou
a ganhar contorno, com o envio ao Congresso Nacional do projeto
de lei sobre as quotas. Não é preciso lembrar
o quanto o tema é polêmico, mas, se aprovado,
na forma em que o for, representará a definição
duma exigência.
Não penso que o mais relevante é cada qual pôr-se
contra ou a favor do sistema de quotas, pois essa é
uma decisão da nação – e se, nas
instâncias democráticas, se entender que pode
ser um meio eficaz para corrigir as inúmeras e históricas
situações de injustiça com que lidamos
no Brasil, a experiência será válida.
Nosso problema será como fazer com que o sistema tenha
eficácia e não se reduza a simples demagogia,
para não frustrar os anseios da nação.
Conseqüentemente, se a intenção é
que pessoas procedentes de classes e grupos étnicos
diferentes cheguem à universidade, não basta
fazer com que passem no vestibular. Acesso ao ensino superior
não é a entrada, mas a saída com a formação
almejada. Primeira pergunta, na esfera das coisas práticas:
como o estudante pobre vai manter-se para poder dedicar-se
aos estudos (o que exige naturalmente o tempo de ócio
próprio da escola, lembrando que skholé, em
grego, significa justamente isto: a existência de um
período na vida do cidadão para que ele possa
formar-se para o exercício da cidadania)? Segunda questão,
a mais relevante: o que a universidade vai fazer para que
o aluno, com esse novo perfil, possa recuperar deficiências
escolares acumuladas em virtude de um sistema de educação
básica pública que foi sucateado? Isso não
diz respeito só às disciplinas que se aprendem
na escola, mas ao próprio acesso à cultura (dominante,
que o cidadão deve dominar para não ser dominado
por ela): a alguém, por exemplo (pensando na Faculdade
de Letras), que nunca teve tempo ou dinheiro para ir ao teatro,
devem ser propiciadas (aqui na universidade) as mesmas condições
que tem (e teve) um aluno de outra classe social para estudar
literatura dramática – mas como ele estará
em pé de igualdade se, eventualmente, nem souber como
uma representação teatral funciona? O que estou
querendo dizer é que existe no Brasil um problema de
acesso à cultura que tem impactos na universidade –
e, se a função da educação é
promover transformações no nível pessoal
e social, como atuar nessa esfera para que a universidade
não perca seu sentido?
Outro aspecto da reforma, relacionado diretamente com a questão
do acesso, é a ampliação de universidades
públicas e gratuitas (de que o vestibular é
apenas um sintoma). Fazendo a pergunta direta: que dia o Brasil,
enfim, vai tornar-se um país civilizado, garantindo
educação, em todos os níveis, para todos
os cidadãos? Pelo que tenho visto da reforma, ninguém
anda falando seriamente em recursos para ampliação
de vagas e mesmo abertura de novas universidades. Não
pode ser classificado como utópico o desejo de que,
um dia, o cidadão brasileiro tenha o mesmo direito
à educação que tem um cidadão
alemão, francês ou italiano, com acesso à
escola pública e gratuita do fundamental à pós-graduação.
Verdade que isso não se faz da noite para o dia, mas
tem de ser feito todo dia, senão nunca atingiremos
o patamar necessário de civilização.
Olhando para dentro das universidades, há pelo menos
dois outros aspectos importantes: de um lado, a questão
da autonomia; de outro, a estrutura atual, que vem da reforma
de 68 e que, evidentemente, envelheceu. Se é para mudar
a universidade, é preciso repensar sua organização
(departamental e por unidades), que não responde mais
nem à evolução das várias áreas
de conhecimento, engessando-as, nem é capaz de atender
às exigências impostas pela necessidade de democratização
do acesso, sendo muito onerosa. Mas é então
que entra a autonomia: o pior dos mundos seria o governo baixar
um pacote, de cima para baixo, dizendo como a universidade
deve organizar-se. A boa estrutura para a UFMG pode não
ser a melhor para a Universidade do Acre (que é nova,
tem de expandir-se e consolidar-se). Também internamente,
a boa estrutura para a FALE pode não ser a melhor para
a Escola de Educação Física. Nesse sentido,
inteligentemente, o Estatuto da UFMG abriu a possibilidade
de que se proponham organogramas diferentes, o que possibilitou
a reestruturação da Faculdade de Letras, uma
experiência pioneira que, acadêmica e administrativamente,
parece-me altamente positiva.
Enfim, quando então falamos de reforma, é preciso
em seguida perguntar: que reforma? E é nos rumos que
essa reforma pode tomar é que é preciso interferirmos.