Ela segurava um Dostoiévski

Ela segurava um Dostoiévski como quem se protege. E, do outro lado da rua, a olhava assim, de pé à espera de algum vento mais forte que a levasse dali.
Aos nove anos entrou no curso de piano porque o pai achava de “bom tom” que a filha aprendesse esse instrumento e porque a mãe queria um móvel daquela classe para tapar o vão que sobrava na sala de visitas. Mas a música clássica não a tocou. Ela necessitava da letra. Precisava que a música dissesse algo mais. Precisava dizer algo de si. Queria fazer alguma coisa que a ensinasse a dizer o que necessitava para aplacar aquela pequena fera que hora despontava. O pai, a esta altura, disse que seria o piano ou o bordado. Enfim, cansada de procurar o que ainda não existia para si, saiu dos cursos e se entregou à escrita e à leitura dos livros que enfeitavam a estante de sua casa e da de sua tia, que era professora e foi quem primeiro disse a ela que “se ela acreditasse que conseguisse viver sem escrever, que não escrevesse”.

Ela segurava um Dostoiévski como quem se descobre, e deixa transparecer nos olhos úmidos a vontade de ser poesia.
Aos dezoito anos se entregou, mulher, entre escolha e escolhida, atrás do piano da sala de visitas, num gesto de ansiosa lentidão. Entre o calor que vinha de baixo e o frio na barriga de quase ser descoberta; entre o medo que os ensinamentos de sua mãe a impunham e a vontade de saltar de cabeça no imenso mar lispectoriano; entre ela e outra, escolheu viver. E viver era a retórica do silêncio, a angústia de pensar, o amor pelo amor. Não se transformou naquele momento como pensou que aconteceria, pois tudo se descortinou mais complexo que o maniqueísmo que ainda a dominava.

Ela segurava um Dostoiévski como quem diz: me leva.
Foi quando saiu de casa. E de tudo que o seu pai disse, levou apenas a saudade do seu olhar vermelho. Saudade que sente até hoje, quando o mundo tenta esmagá-la e sua única vontade é se esconder atrás da Cecília Meireles.
Descobriu a capital com o mesmo fervor que um recém-nascido descobre que o mundo não se resume às paredes do útero da mãe. E tudo era maior e mais interessante.

Ela segurava um Dostoiévski como quem segura uma flor, que desabrochou rindo em seu colo; e que parece murcha aos olhos de quem passa, apressado, do outro lado da rua.
Foi quando o ônibus passou e a levou dali, e voltei a caminhar em direção à vida que me esperava, e já estava atrasado.

 

 

Fabiano Novais é escritor e acadêmico de Medicina. Publicou De médico e louco...(2002), livro de contos e crônicas.

 
 
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