Guerrilha do Dissenso


Mais conhecido entre nós como o organizador de Um mapa da ideologia, o esloveno Slavoj Zizek não é o que se poderia chamar de um intelectual ortodoxo. Transitando na interseção da psicanálise com a política radical, e por isso mesmo, guardando certa distância estratégica dos pós-estruturalistas com que dialoga, o pensamento de Zizek, longe de se objetivar na forma de um raciocínio rigidamente concatenado, parece antes elevar a quebra à condição de princípio estrutural. Encravado na dinâmica de operacionalização de seus ensaios, é como se, sob esse princípio, a fluidez da leitura se visse continuamente truncada pela evocação de um exemplo desconcertante, que nunca se sabe de onde o autor irá tirar. Avançando por descontextualização e montagem de filmes, eventos políticos e detalhes curiosos, numa tocada que às vezes lembra um pouco o Barthes “mitólogo”, esse insólito dispositivo de enunciação não é em momento algum dissociável da “mensagem” que veicula. Contudo, o que seria certamente truístico em se tratando de um ficcionista, soa no mínimo estranho em um filósofo profissional, mesmo que seja esse filósofo também um inveterado piadista. A um olhar apressado, aliás, o fato de que essa predileção pelo anedótico esteja direcionada na obra de Zizek para temas que nada têm de amenos – como o totalitarismo, o Holocausto, a religião e a questão palestina – correria o risco de ser vista, talvez, como apenas mais um exemplo de textualidade pós-moderna, gerando uma impressão que, ainda que correta sob certos aspectos, está longe de lhe fazer inteira justiça. Nada mais apropriado, aliás, para alguém que, ao lançar os seus olhos sobre a cena política contemporânea, parece deliciar-se, não raro, em deixar que a verdade surja da própria superfície de um mal-entendido, e não de um suposto núcleo duro que caberia a esse mal-entendido dar resguardo. É o que ajuda a explicar, enfim, porque, em seus melhores momentos, o texto de Zizek, à exemplo do que também ocorre com seu mestre Lacan, antes de ser sobre alguma coisa, seja ele mesmo a própria coisa, a ponto de tornar contra-producente o uso de categorias como conteúdo e forma. Característica, diga-se de passagem, que gera ainda um problema extra para o seu resenhista: afinal se, diante de trabalhos mais sistemáticos como O sublime objeto da ideologia, a presença de um ponto de partida e um ponto de chegada torna mais exeqüível uma eventual paráfrase, uma coletânea de ensaios como Bem-vindo ao deserto do real, a começar pelo caráter mais centrífugo do seu “tema”, não parece se prestar docilmente a esse tipo de exercício. Não, pelo menos, sem antes impor aos que nele se aventurem o ônus de uma radical auto-supressão.

Tendo como fio-condutor as repercussões do 11 de setembro, trata-se de um livro que, colado como está no seu próprio presente, dificilmente poderia almejar a qualquer serenidade – atitude aliás muito pouco esperável em um entusiasta da “violência criadora”. Nesse entremeio, contudo, se o traçado errático das reflexões tende a desautorizar a busca de um eixo mais definido, não é menos verdade que, na teia de homologias e saltos que o compõe, é possível discernir a persistência de uma tensão contínua, entre a recusa de subsumir as narrativas evocadas em conceitos claros e os esboços de conceitos que parecem quase assombrar essas mesmas narrativas. Assim, ainda que o atrito do autor com o já referido presente acabe inequivocamente mediado por algumas idéias recursivas – como a noção da política como agón irredutível, e o horizonte da totalidade como uma seqüência de contradições mantidas em suspenso – a voracidade com que o conjunto se detém sobre os exemplos singulares, num arco que vai da Opus Dei à capa do catálogo da editora Verso, passando pelo mulá Omar e por filmes como Minority report e Corpo fechado, sugere algo como uma negociação crispada com as expectativas referenciais de um mundo globalizado, submetidas por Zizek a uma espécie de efeito de distanciamento brechtiano. Nesses termos, no contrapelo da retórica a ser esperada de analistas políticos mais tradicionais, que diante da irrupção do dado imprevisto, optariam por prudentemente remetê-lo a causas remotas, o modus operandi de Zizek, ao criar junções paratáticas entre coisas desconectadas no tempo e no espaço, aponta, nos seus próprios termos, para algo da ordem de uma operação de guerrilha epistemológica, em que se trata justamente de, pelo choque do chiste e pelo cultivo do paradoxo, adiar o processo pelo qual um “evento” termina por se fazer “objeto”. Daí a possibilidade de, apenas para ficar num caso óbvio, ao se deter sobre a figura de Bin Laden, Zizek ver nele uma reedição do Kurz de Joseph Conrad, ou, levando essa associação às últimas conseqüências, entender ditadores como Pol Pot ou mesmo Hitler menos como o produto de uma barbárie exógena do que como o excesso gerado no interior do próprio sistema “ocidental”. Leitura que, elevando um texto de ficção à condição de inteligibilidade do fato bruto, tem também o efeito de, num único golpe, ao abalar o estatuto referencial da coisa tratada, expulsar o pretenso analista dos próprios limites circunscritos à sua disciplina, não soando de resto muito recomendável nos corredores dos departamentos de political science. Departamentos, ocioso notar, que, confrontados com impertinências desse naipe, não lhes dispensariam um tratamento muito mais amistoso do que o que Platão recomendou aos feiticeiros.

E no entanto, não obstante o que haja de provocativo em inúmeros trechos do livro, entre os quais caberia sem dúvida destacar o capítulo sobre a “paixão do real”, é sobretudo em paradoxos pragmáticos como o acima descrito – ou seja, em atos e juízos que, uma vez efetivados, terminam antes por se voltar contra o próprio sujeito que os realiza, precipitando-o num locus resistente a regulações a priori – que parece-me cristalizar-se de modo mais nítido à política da escrita zizekiana. A esse respeito, aliás, que essa política passe muitas vezes ainda pela evocação dos grandes meta-relatos de Marx e Freud, resvalando inclusive em idiossincráticas afinidades leninistas, não faz, a meu ver, senão elevar exponencialmente o seu potencial de dissenso, conduzindo-nos ao ponto em que a impossibilidade de se colocar algo em palavras – por exemplo, de contrapor a um extravio argumentativo uma objeção “pertinente”, ou até de fixar com nitidez o sério e o não-sério – surge como a clareira em que emerge o agón teórico-político, no qual é a própria “realidade” que se torna um dado passível de decisão. Por outro lado, voltando agora à materialidade do texto do filósofo, curioso notar como muitos dos raciocínios de Zizek culminam quase sempre num salto abrupto dos enunciados descritivos a perguntas urgentes, num movimento que não só torna explícitas as suas condições concretas de enunciação – à distância da pseudo-onisciência de um discurso estritamente referencial – como enreda o leitor na névoa do inevitável desconforto que produz. E não por acaso: pois se a velocidade com que essas perguntas se formulam concorre justamente para inviabilizar uma resposta pronta, daí não se segue, em absoluto, a desobrigação do imperativo de responder ao que, nessas perguntas, nos solicita. Ou mesmo ao que nelas ainda resta de impensado. Na força com que prende o leitor a tal coerção, não estará a menor das virtudes do livro de Zizek.


 

 

Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor e pesquisador do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. Além de Bem-vindo ao deserto do real, é autor de vários livros, entre os quais O mais sublime dos histéricos; Eles não sabem o que fazem; Um mapa da ideologia (org.).

Emílio Maciel é doutorando em Literatura Comparada na FALE, onde também é professor substituto de Literatura Estrangeira em Língua Portuguesa.


 
 
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